sexta-feira, 29 de junho de 2007

"Bons Augúrios"

“(…) E eram agora três da tarde. O Anticristo estava na Terra há quinze horas e um anjo e um demónio tinham estado a beber continuamente durante três delas.
Estavam sentados em frente um do outro na sala das traseiras da velha e sombria livraria de Aziráfalo, no Soho. (…)
A maior parte das livrarias do Soho têm salas das traseiras e a maioria das salas das traseiras estão cheias de livros raros ou, pelo menos, muito caros.
Mas os livros de Aziráfalo não tinham ilustrações, tinham velhas capas castanhas e folhas que crepitavam. Ocasionalmente, se não tinha alternativa, vendia um.
E ocasionalmente, homens de ar sério e fatos escuros vinham visitá-lo, sugerindo, muito delicadamente, que talvez ele estivesse disposto a vender a própria livraria (…)
E Aziráfalo baixava repetidamente a cabeça, sorria, afirmava que ia pensar no assunto. E depois eles iam-se embora. E nunca mais voltavam.
Lá porque uma pessoa é um anjo, isso não quer dizer que tenha de ser um anjinho.
A mesa em frente dos dois estava coberta de garrafas.
(…)
- Mas tu fazes parte disso - sublinhou Aziráfalo. – tu tentas as pessoas. E és bom nisso.
Crowley bateu com o copo na mesa.
- Isso é diferente. Elas não têm de dizer que sim. É a tal historia do inefável, certo? O teu lado é que inventou isso. Estarem sempre a experimentar as pessoas. Mas não até ao ponto de as destruir.
- ‘Ta bem, ‘Ta bem. Não me agrada mais do que a ti, mas já te expliquei. Eu não posso desobece… desocebe… deixar de fazer o que me mandam. Pu’que sou um anjo.
- Não há teatros no Paraíso – lembrou Crowley. – E muito poucos filmes.
- Não me queiras tentar a mim – avisou Aziráfalo com ar infeliz. – Conheço-te muito bem, velha serpente.
- Mas pensa nisto - insistiu Crowley, incansável. – Tu sabes o que é a eternidade? Sabes o que é a eternidade? Ouve bem, sabes o que é a eternidade? (…)
- Não vais ter escolha.
- Escuta…
- O Paraíso tem uma total falta de gosto.
- Olha cá…
- E nem um único restaurante de sushi.
Uma expressão de dor contraiu o rosto do anjo, que ficara subitamente muito sério.
Não posso lidar com isto enquanto estiver bêbedo – afirmou. – Vou pôr-me sóbrio.
- Eu também.
Estremeceram ambos ao sentirem o álcool abandonar-lhes a corrente sanguínea e endireitaram-se um pouco nas cadeiras. Aziráfalo endireitou também a gravata.
- Não posso interferir nos planos divinos – crocitou. (…)"

Neil Gaiman e Terry Pratchett, Bons Augúrios #3.

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